Vinte anos após Furacão Katrina, Nova Orleans sofre com esvaziamento cultural
- Rodrigo Zangrandi
- 16 de jun.
- 5 min de leitura

Ao andar pela cidade de Nova Orleans, no estado da Louisiana, Estados Unidos, é difícil encontrar restaurantes tradicionais que cozinham a comida típica da cidade. Duas décadas após o Furacão Katrina, investimentos de mais de US$ 120 bilhões permitiram a reconstrução física da cidade. A recuperação das suas tradições culturais, como a culinária e a música, no entanto, ainda deixa a desejar. Moradores que preservavam essa rica herança ancestral, retirados pela tragédia natural de suas casas, até hoje não conseguiram voltar.
A cultura da cidade é fortemente marcada por influências francesas, espanholas e afro-americanas, que se refletem tanto na música quanto na culinária local. O jazz, nascido ali entre 1890 e 1910, é um dos principais símbolos culturais, transformado ao longo do tempo em diversos estilos. Essa musicalidade também se manifesta na gastronomia. A culinária Creole, de origem francesa, com temperos marcantes. A culinária Cajun, vinda de colonos expulsos. A Soul Food, com raízes afro-americanas, que valoriza ingredientes como arroz e feijão. Juntas, essas tradições compõem a identidade cultural da cidade de Louisiana.
A cidade, conhecida como capital do Jazz, é um dos pontos artísticos e culturais mais importantes dos Estados Unidos da América, e está retornando ao que era antes. A jornalista Heloísa Villela, que atuou como correspondente internacional do jornal O Globo na época, diz que sentiu um vazio enorme na cidade, que não mais era a mesma Nova Orleans animada pré Katrina: “O que aconteceu é que demorou muito tempo para a cidade se reestruturar, muita gente que fugiu ou que foi levada para Houston e outras cidades, elas começaram a arrumar emprego, pagar as contas e foram ficando e não retornaram. Teve uma luta muito grande do setor da música para trazer de volta os músicos para reavivar a alma da cidade”.
Bo Dollis Jr, filho do artista Bo Dollis, disse para o jornal WDSU, que há uma mudança, mas que ainda tem muita coisa a se fazer: “Ainda está crescendo. Nunca voltou a ser o que era antes”, disse ele. “Porque antes do Katrina, havia eventos acontecendo em todos os lugares. Muitos músicos não voltaram. Ainda temos a Bourbon Street, a Frenchmen Street. Mas antigamente, tínhamos bandas amadoras tocando em cada esquina; tínhamos bandas amadoras circulando pelo bairro. Não é mais assim porque muita gente não voltou”.
Curtis Pierre, morador da cidade e presidente da casa cultural “Casa Samba”, destacou a gentrificação. O processo de transformação de uma região, geralmente de baixa renda, pela chegada de pessoas de maior poder econômico, elevando os preços imobiliários e o custo de vida, implicando na saída da população original, aconteceu de forma imperceptível e que um dos grandes fatores para isso foi durante o plano de evacuação. “Foi muito imperceptível, e eu acho que o que ajudou mais nessa sensação foi o envio de pessoas para várias cidades. Isso fez com que diversas áreas ficassem sem moradores, após o desastre”.
Nova Orleans teve um programa de reconstrução ou venda das casas destruídas, chamado de “Road Home Program”, em que a cidade oferecia dinheiro, ou para comprar sua casa destruída pelo furacão, ou para a reconstrução dela. O programa, porém, favoreceu mais os ricos que os pobres. Segundo uma reportagem do ProPublica, The Times-Picayune | The Advocate e a WWL-TV, o Road Home prejudicava as pessoas dos bairros pobres, ao mesmo tempo que dava às pessoas dos bairros ricos mais do que necessitavam. De acordo com a análise feita, as pessoas nas áreas mais empobrecidas de Nova Orleans, aquelas com uma renda média de US$15.000 ou menos, tiveram que arcar com 30% dos custos de reconstrução mesmo após os subsídios do programa Road Home, ajuda da Agência Federal de Gerenciamento de Emergências (FEMA) e dos seguros. Em áreas onde a renda média era superior a US$75.000, a diferença de custos foi de 20%.
O desastre aconteceu em agosto de 2005, pela quebra das barragens, após o furacão de magnitude 3 atingir a cidade e sobrecarregar os sistemas. Os diques que continham as águas do Lago Pontchartrain e do Lago Borgne foram completamente submergidos por 25cm de chuvas e pela maré trazida pelo furacão, Os demais foram rompidos, após falharem devido ao grande acúmulo da pressão causada pela água.
O professor de Ciências Atmosféricas da USP, Augusto José Pereira Filho, destaca que foi um fenômeno atípico, mas, que, mesmo assim, a área já é predisposta a ter esse tipo de tragédia: “O nosso sistema é violento e produz tragédias dessa magnitude, dado as circunstâncias serem favoráveis, e no caso Katrina, a temperatura do Golfo do México estava muito alta e a energia precisa ser liberada. Como isso é feito? Por meio desses sistemas violentos de furacões”. Além disso, ele reitera que o ocorrido não tem relação com uma crise climática, mas sim com uma variabilidade climática. “Isso não é mudança climática, isso é variabilidade climática. Mas o que faltou lá, segundo as autoridades, foi um reforço nessas ações estruturais, ou seja, obras gigantescas para reduzir o efeito desses eventos”.
A cidade teve gastos de mais de U$ 120 bilhões na reconstrução de danos estimados em mais de U$ 135 bilhões. Diversas áreas seguem uma recuperação até os dias atuais. A cidade implementou diversas melhorias na prevenção de catástrofes, como por exemplo, investimentos de U$ 14 bilhões em um novo sistema de diques e muros de contenção da água. Parte da população, porém, não se sente segura, mesmo com os investimentos. “Eu realmente não sinto (segurança) no que eles fizeram, que eles conseguiram. Vou ser honesto com você. Não houve furacões sérios o suficiente, como o Katrina, para comparar. Mas não consigo me sentir seguro” , disse Curtis.
Não é só Nova Orleans que sofreu com alagamento de parte da cidade. Em abril de 2024, a região metropolitana de Porto Alegre também sofreu com uma enchente de dimensões catastróficas. A cidade, desde o ano passado, passa por uma reconstrução estrutural enorme, para corrigir problemas atuais que foram afetados pela enchente, quanto planos futuros de prevenção. Os casos das cidades de Porto Alegre e Nova Orleans têm muita semelhança, e o professor Augusto José menciona: “Ambos os eventos foram uma variabilidade climática. Já havia ocorrido outro há 80 anos em Porto Alegre, inclusive noticiado aqui por um jornal aqui de São Paulo da época, o Estadão. Causou muito prejuízo, e agora, pela mesma razão do katrina, que aqui as estruturas de drenagem falharam também. Faltou um reforço nessas estruturas, nas ações estruturais, ou seja, obras gigantescas para reduzir o efeito desses eventos”.
Após 20 anos, a cidade de Nova Orleans serviu e ainda serve como referência de reconstrução e resiliência. O que as pessoas não observam, porém, são os desafios dessa reconstrução da cultura. O projeto cultural da Casa Samba, um projeto cujo objetivo é trazer a cultura brasileira para a cidade, teve que ser refeito do zero, após o furacão, pois diversos ex-membros do projeto haviam se mudado da cidade, sem conseguir retornar desde então. Para Curtis, essa fuga da comunidade construída no bairro foi um dos momentos mais difíceis vividos:
“A parte mais difícil foi perder a comunidade, a jovem comunidade da Casa que havia desenvolvido aqui, bem no meu próprio bairro, no Garden District de Nova Orleans. Perdi meu futuro com as crianças. Perdi o futuro. E a maioria dos adultos que faziam parte do grupo — um ou dois deles — eram muito importantes para o grupo. Algumas das pessoas mais jovens do grupo voltaram depois. Mas eles eram, quando digo mais jovens, estavam justamente saindo da faculdade. O Katrina definitivamente afetou. Mas a gente sempre vai se reconstruir.”
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